quinta-feira, 26 de julho de 2007

OS CUCOS

O ex-DGEMN João Zimbreiro encarna La Fontaine e escreve, mesmo a propósito, uma fábula à portuguesa...

Em Giestal, aldeia montanheira das fraldas da Castainça, os prédios eram cultivados com enlevo, ao ponto de os poucos viajantes que conseguiam trepar a canelha da esteva ficarem embasbacados com as tonalidades bucólicas dos seus campos – vinhas e olivais, emolduradas por hortas e pomares, que na primavera perfumavam de verdura a limpidez das águas do urgueira, o qual, por sua vez lhe retribuía com um abraço húmido e fresco, envolto no rumorejar das cascatas que, do alto das fragas, se precipitavam em bucólicos recantos, onde melros e pintassilgos cantavam ao desafio.
Nesta aldeia todos os agricultores tratavam a terra com rudeza e virilidade, a mesma rudeza e virilidade com que, no Inverno gelado e sombrio, de sachola em riste, enfrentavam as feras que, manhosamente, açulavam os rebanhos, e, ao mesmo tempo, com esmero igual que dedicavam aos mais próximos. Agradecida, a terra retribui-os com o sustento do dia a dia, todo o ano. A harmonia de cores da ladeira, qual arco da velha na falcoeira ou tapete tecido e bordado pelas tecedeiras de Souto, deu brado em toda a região e o próprio Governador da província quis assistir ao vivo àquele espectáculo telúrico, num sábado aleluia, pelo cair da noite. Consta-se mesmo que, devido ao odor inebriante dos rosmanos e dos laranjais em flor, adocicado pelo aroma da terra cavada de fresco, nessa noite, a senhora governadora teria alcançado as esperanças que mais tarde se realizaram no seu único filho, Basílio José, que agora estuda leis em Coimbra.
Contudo, por alturas da mudança do governo, o ministro resolveu substituir o governador por um seu parente que, até aí, vivia de negócios da fruta e de um "gancho" que um tio da parte da mãe lhe havia arranjado numa repartição da Câmara. A nova foi mal recebida em Giestal, pois constou que havia a intenção de acabar com a agricultura na aldeia e o certo é que, em protesto pela deposição do antigo governador, amigo do povo e homem avisado e de conhecimento sábio, nem o regedor nem o cabo de ordens se deslocaram à vila para assistir à posse.
Logo que tomou o poder, o novo governador, dado que nunca gostou de agricultura nem de campo, logo começou a pensar no modo como haveria de ajustar a sua vida à situação, ou pior, como é que haveria de moldar a vida dos aldeões aos seus desígnios, para poder desfrutar dos seus caprichos. Como não sabia nada da lavoira, mas não queria dar parte de fraco, fez-se amigo de alguns lavradores e começou a dar importância aos poucos que, na terra, viviam à custa de maledicências, fomentando intrigas e desavenças entre vizinhos. Era mesmo o que lhe convinha: dividir para reinar. Por isso ninguém estranhou que, com as costas quentes do primo, logo após a primeira visita à terra, tentasse destituir todos os que, no povo, zelavam pela ordem e pelas tradições. Porém, como os anciãos lhe fizeram má cara, deixou-os ficar no seu lugar, sem poder nem autoridade, instigando com subtileza e perfídia a circulação de boatos e mentiras e tratando dos assuntos da forma que mais lhe convinha. Também emprenhava facilmente pelos ouvidos. Mas, afronta suprema foi quando, nas barbas do regedor, recebeu no seu gabinete, Gustavo, o do pé leve, rapazote já entrado, a viver nas bordas da marginalidade que, quando são era até de boas falas, com um copo de vinho era um boca de lavagem e tratava mal toda a gente. Estas e outras desfeitas levaram o regedor e o cabo de ordens a baterem com a porta. Nesse mesmo dia, tratou de os substituir: para o lugar do regedor foi um guarda-rios de Ribeira do Freixo e o cabo de ordens foi substituído por um cantoneiro de Lameiras D'Além que, segundo dizem, é seu compadre.
Como tinha gosto pelo negócio da fruta, com o intuito de controlar os lavradores, mandou construir um armazém e nomeou a D. Leopoldina da Costa, mulher de meia-idade, mas ainda de abundantes virtudes, para a sua guarda.
Agora era uma questão de tempo. "A agricultura não interessa. Dá muito trabalho e eu não a entendo. O que importa é o negócio". Os melhores foram propositadamente encostados, caluniados e perseguidos e com a promoção da incompetência, onde havia vinhas passou a haver silvas, as hortas foram substituídas por grama e nos lameiros medraram pinheiros e giestas. Isto eram facadas no brio dos melhores agricultores que, como o Manuel do Fundo, não deixavam o gado comer as milhãs depois de espigadas, para que a semente não se propagasse com o estrume e, agora, eles eram piores que as ervas daninhas, piores do que as próprias milhãs. Mas estava manietado pelos esbirros, pela campanha asfixiante que um propagandista, entretanto contratado, difundia e pelas imposturas e fanfarronices exibidas perante os diversos ministros que, coitados, quando se apercebiam das suas artimanhas já estavam com um pé na rua.
Perante a incredibilidade dos anciãos, repetia-se que "passámos a ser os melhores na produção de chás de grama e junca, mestres em compotas de amoras silvestres e especialistas em tisanas de labrestos e emplastros de mantrastos. Éramos até reconhecidos internacionalmente, neste ramo, e podíamo-nos portanto orgulhar do trabalho desenvolvido!". Até se promoveu a publicação de um artigo intitulado " como, de um forma ecológica, se pode transformar uma seara num silveiral medicinal".
Para aguentar a fama, porém, era necessário promover protocolos, parcerias, e outros mecanismos usados nos negócios e, ponto número um, manter um frenesim constante de viagens ao estrangeiro que, com estas e outras artimanhas, ia "cravando" à tutela. Este estratagema até funcionou bem, mas a partir de certa altura o povo começou a ficar sem trabalho, a desmotivar-se e a perceber a perversidade da trama. No entanto, com domínio absoluto de toda a actividade, com serena tolerância e pudica matreirice, a autoridade e a prepotência multiplicaram-se em ataques e perseguições impiedosas a quem ousasse discordar do seu "sentido de missão". São incontáveis os casos de conceituados lavradores que, por balbuciarem uma opinião, tiveram de procurar a vida noutras safras, enquanto o novo regedor, protector e promotor descarado da incompetência, da injustiça e da prepotência, sempre com as costas quentes, continuava o seu despudorado serviço de capataz.
Tudo isto gerou uma pressão latente, entre os súbditos, pronta a explodir em qualquer instante, coisa que infelizmente não veio a acontecer, por se ter dado o caso de as tramas estarem apodrecidas e as teias entretanto urdidas terem sido atacadas pela traça, como o leitor já vai ver.
Depois de tantos contorcionismos, genuflexões, vénias e outras manteiguices que exibia sempre que havia mudança de ministério, desta vez, apresentou-se como arauto da agricultura biológica, mas teve azar. O ministro, embora não fosse agricultor, tinha sido criado no campo, entre vinhas e pomares, e conhecia a terra tão bem como a química industrial, ciência em que se doutorara. Em rapaz, tinha até ajudado o seu pai a plantar as estacas do bouço, hoje olival feito, a dar mais de 50 almudes. No fim da conversa despediu-se cortesmente do seu funcionário, mas perante tantas asneiras proferidas seraficamente, como sendo as últimas inovações do progresso nesta área, tomou a convicção de que estava perante um pavão inchado que, na sua universal ignorância, nem se apercebeu da figura que tinha feito e que eu também me dispenso de comentar.
No caminho para o armazém da fruta, parou para tomar um café e pensou com os seus botões: "este já caiu que nem um papalvo. Como não percebe nada disto, ficou extasiado com o meu discurso. Devo ter caminho aberto para continuar". Isto passou-se numa terça-feira e na sexta-feira seguinte pediu outra audiência. "Na sequência da nossa conversa, sinto-me na obrigação de lhe dizer que o nosso trabalho, neste domínio, está a ser muito apreciado no estrangeiro e pediram-me para ir a uma quinta ao Brasil, explicar como o inventário das espécies é o caminho mais importante para a sua preservação. È mais importante que a própria preservação, isto porque para ver as plantas preservadas é necessário ir ao campo, passar por lama, fragas, matas, restolhos e outras incomodidades e eu, no armazém, tenho espaço, muito espaço, para resgatar essas espécies através de um catálogo, criado por mim e pela minha secretária e que também é muito apreciado no estrangeiro". "E as vinhas? E o azeite? E a hortas? E os laranjais? Desde muito novo que não me é estranha a fama que os produtos desta terra granjearam cá e além fronteiras. No meu tempo de Universidade, contou-me o avô de um colega meu do Porto que ia todas as quartas feiras de manhã a uma loja de produtos regionais comprar azeite fabricado em Giestal". "Bem…", balbuciou o governador. Momentaneamente caiu um pesado silêncio no gabinete, mas, à custa de argumentos que foi buscar ao fundo da sua matreirice, logo atalhou que hoje o pessoal obreiro é mal conceituado, o trabalho do campo é de baixa índole e por isso não se deveria alterar o rumo da inovadora missão que ele próprio tinha estabelecido. E até para o governo era mais erudito, mais nobre e, sobretudo, dava muito mais nas vistas ("e, permita-me a minha experiente opinião, olhe que nas eleições isso é muito apelativo, para o povo!"). O pobre do governante já nem sabia o que havia de fazer, mas a sua educação não lhe permitia pô-lo na rua, que era o que de facto lhe apetecia fazer. Por fim sentenciou. "Vai, mas vai sozinho e é a última vez!" E despediu-se seca e friamente.
Percebendo que as coisas não estavam azadas como dantes, pensou que poderia estar a chegar ao fim o seu "reinado". Chamou por isso os seus mais leais colaboradores e tiveram uma reunião até ao anoitecer.
Estávamos no fim da Primavera e num destes dias atrovoados em que nem uma folha se mexe. António guarda-rios, o regedor, ordenou que se abrissem todas as minas e presas pois havia indicações para proceder de imediato à sua limpeza.
….
Hoje, primeiro dia de Julho, Manuel do Fundo, em cima dos seus sessenta e oito anos, sempre vividos em Giestal, encostado à sachola foi dar uma volta pelo negrume da encosta que outrora tinha olivais e laranjais e, mais tarde, erva daninha e silvedos que os abafaram, e, no alto da fraga do lobo, sentou-se, contemplando a aldeia e a terra ressequida de carvão que o fogo da semana passada havia tisnado. Não lhe sai da cabeça o remorso de não se ter oposto à ordem autoritária do guarda-rios, de cuja competência sempre desdenhou. É certo que alguns lavradores mais avisados ainda ripostaram que já não era altura de escoussar os tanques, pois podia vir um fogo e não havia água para o combater e os poucos homens da aldeia já não tinham força nem coragem nem motivação para o conter só com enxadas, como já havia acontecido em outras alturas, mas (pensavam eles) a força não estava do lado deles… e deixaram que alguns serviçais mais zelosos cumprissem a ordem do mestre. Estava a cismar em tudo isto e em como iria ser o futuro, o seu e o dos vizinhos, quando o surpreendeu o voo rasante de uma andorinha que se dirigiu para a rota da mina da Fontinha. Na sua curiosidade congénita, foi vasculhar o esconderijo da ave e o que apreciou, só outra vez, quando acompanhava o pai na rega do painço, na sua meninice, tinha apreciado: a andorinha dava de comer a um cuco. E de imediato lhe vieram à mente os iluminados que tinham causado a desgraça. Eram piores que os cucos.

João Zimbreiro


Julho de 2007

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