sábado, 19 de janeiro de 2008

Folhas caídas

Naquele tempo um agricultor resolveu distribuir as terras, feitores capatazes e obreiros pelos seus três filhos. Chamou-os então aos três, sentou-os à sua volta e expôs-lhes a sua intenção. O filho mais velho, levantou-se, tomou a palavra e observou que, por já estar a tomar conta de outros afazeres, não tinha tempo para dirigir a lavoura e que o amanho do seu negócio não podia ser feito por camponeses. Não obstante estas considerações, o pai levou por diante o seu intento e, de acordo com a lei antiga, depois de lhes ter revelado o modo como deveriam proceder, nomeou o filho mais velho como cabeça de casal para dirigir as partilhas e o do meio como mediador entre o mais velho e o mais novo.
Como os filhos tivessem todos pouca experiência da lavoura, um dos feitores, conhecedor das terras e dos obreiros tratou de arrebanhar para o seu senhor as melhores terras e a maior parte dos servos.
De entre os criados mais antigos, havia um, que, embora sempre leal e fiel ao seu senhor, ao feitor e ao capataz, já se encontrava doente e sem forças, pelo que foi separado do seu grupo e remetido a um dos outros irmãos, a quem se dirigiu envergonhada e humildemente suplicando trabalho. Este, respondeu-lhe que não o conhecia e que, por isso, deveria retornar ao seu feitor, pois, naturalmente, era aí, junto dos seus, que deveria estar. De chapéu na mão e cabeça curvada, novamente diante do seu antigo capataz suplicou-lhe que o deixasse continuar a trabalhar nos afazeres que sempre fizera, ao lado daqueles que sempre foram seus companheiros. Aquele, porém, retorquiu-lhe que agora já não pertencia ali e que se o outro irmão não o queria com ele, deveria ir ao encontro do cabeça de casal para tratar da sua situação.
Sabendo que a sua condição de camponês, de doente e de velho não teria qualquer préstimo para os negócios do irmão mais velho, dirigiu-se para o Paço na presunção de que o velho senhor, seu amo, lhe deitaria a mão. Porém, ao chegar à porta do Palácio, viu uma multidão de mendigos, vagabundos e outros deserdados e percebeu que a época era de crise confusão.
Ao vê-lo, um dos pedintes mais precisados, levantou-se, fitou-o e disse-lhe: bem-aventurados os pobres, porque será deles o reino dos céus! Bem-aventurados os que sofrem, porque serão consolados! Mas ai daqueles que, conhecendo-te, te deixaram nesta condição; daqueles que te viram com sede e não te deram de beber; daqueles que te viram com fome e não te deram de comer; daqueles que te viram chorar e não te consolaram. Esses serão separados dos seus e sofrerão para sempre em grau muito mais elevado e severo o que agora te fizeram a ti.
A primeira parte desta história foi inventada; a parte final é uma adaptação do Evangelho de S. Mateus; o protagonista pode ser qualquer uma das vítimas do PRACE. No entanto, existe, pelo menos, uma que pode consubstanciar toda a angústia do servo doente e angustiado: pode chamar-se Serra e ser ex-funcionário da Direcção Regional de Monumentos de Lisboa.

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