domingo, 30 de maio de 2010

Denunciando os (maus) ladrões

Vai longe o tempo em que o verbo rapinar se conjugava, sobretudo, distante da corte e os respectivos sujeitos despertavam a atenção dos súbditos de Sua Majestade mais esclarecidos. 
Pela sua oportunidade, transcreve-se um extracto do sermão do Padre António Vieira,  pregado na igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655.

Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio* na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo. Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras de Daniel: Nabucodonosor rex misit ad congregandos satrapas, magistratus et judices**, declarando a etimologia de sátrapas, que eram os governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio: Dicuntur satrapae quasi satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere: Chamam-se sátrapas, porque costumam roubar assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos.
O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem Despautério.

Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo.
Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina.
Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos.
Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas.
Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância.
Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência.
Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
Furtam pelo modo infinito, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos.
Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência.
Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes de que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos.
Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse.
Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar.
E quando eles têm conjugado assim toda a voz activa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.

É certo que os reis não querem isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário; mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações, tão peritos ou tão cadimos nelas, que outros efeitos se podem esperar dos seus governos?
Cada patente destas, em própria significação, vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um passaporte para furtar.
Em Holanda, onde há tantos armadores de corsários, repartem-se as costas da África, da Ásia e da América com tempo limitado, e nenhum pode sair a roubar sem passaporte, a que chamam carta de marca. Isto mesmo valem as provisões, quando se dão aos que eram mais dignos da marca que da carta.
Por mar padecem os moradores das conquistas a pirataria dos corsários estrangeiros, que é contingente; na terra suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E se alguém duvida qual seja maior, note a diferença de uns a outros.
O pirata do mar não rouba aos da sua república; os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos juraram homenagem.
Do corsário do mar posso me defender: aos da terra não posso resistir; do corsário do mar posso fugir: dos da terra não me posso esconder; o corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por si a monção.
Enfim, o corsário do mar pode o que pode: os da terra podem o que querem, e por isso nenhuma presa lhes escapa.
Se houvesse um ladrão onipotente, que vos parece que faria a cobiça junta com a omnipotência? Pois isso é o que fazem estes corsários.


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* Furtar.
**Despachou o rei Nabucodonosor correios para que se ajustem os sátrapas, os magistrados e os juízes (Dan. 3,2).

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