sexta-feira, 6 de abril de 2012

ESTE PAÍS NÃO É PARA ENGENHEIROS

Vasco Martins Costa deu uma entrevista à primeira edição de 2012 da Ingenium*, em que fala da extinção da DGEMN, do desmantelamento das equipas técnicas de construção, conservação e reabilitação de edifícios e da diluição dos seus técnicos altamente qualificados por diversos organismos.
Com a extinção  da DGEMN, através do insensato PRACE, abriu-se um vazio na conservação e reabilitação do património imobiliário público, bem visível na degradação de edifícios e monumentos, na falta de competência técnica na maior parte das obras, entretanto realizadas (ou em curso), e dos  seus elevados custos para o erário público. O erro está à vista de todos: deitou-se ao lixo uma experiência de quase oito décadas e retirou-se ao Estado um instrumento que consubstanciava a sua capacidade operacional para gerir e conservar o seu património imobiliário.  
Ora, Vasco Martins Costa foi - em nosso entender e como temos escrito neste blogue** - um dos principais  contribuidores para a extinção da DGEMN, com a conivência e apoio activo de alguns a quem tal extinção trazia vantagens (como se viu).  O seu consulado de mais de 17 anos ficou marcado pelo desvio a algumas das atribuições tradicionais da Direcção-Geral, pela falta de formação adequada e relevante dos técnicos, pela despromoção e mesmo perseguição a alguns funcionários exemplares (como, por exemplo, o ex-subdirector-geral António Manuel Ribeiro e o nosso saudoso colega Gameiro), a nomeação de alguns dirigentes vindos de fora ( que não tinham experiência de obras em edifícios públicos), a introdução de relógio de ponto e o controlo horário dos funcionários (idas ao café ou às instalações sanitárias), passando pelos célebres exames para determinação da aptidão ou inaptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício das funções correspondentes à sua categoria profissional (sic) , etc...
Se o mal da Administração Pública tem sido os governantes, pode-se dizer que o mal da DGEMN - que a conduziu à extinção - foi, também, ter tido Vasco Costa.
O ex-director-geral da DGEMN focou, ainda, na sua entrevista, a extinção da carreira de engenheiro*** na Administração Pública e a desvalorização dos engenheiros, esquecendo-se que ele próprio contribuiu para essa situação, quando preteriu engenheiros altamente competentes e nomeou profissionais de outras carreiras para cargos de chefia que são reconhecidamente melhor desempenhados por engenheiros.
A pedido de alguns ex-DGEMN, e considerando que tem algum sentido auto-crítico, eis um extracto da entrevista concedida a Nuno Miguel Tomás, com fotos de Paulo Neto.

Presidiu durante 17 anos à Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), extinta em 2007 e cujas competências foram diluídas no Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana e no Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico. Era a mais velha Direcção-Geral com o mesmo nome em funcionamento na Administração Pública (AP) portuguesa. Que mais-valia acarretou para o País esta decisão ?
A resposta a esta pergunta é aparentemente fácil, porque não houve qualquer vantagem, antes pelo contrário. A problemática tem de ser vista dentro de uma visão diferente, de reorganização da AP, e dentro desse aspecto não me cabe a mim responder à questão, porquanto com a extinção da DGEMN acabei por pedir a aposentação e saí da Administração, tornando-me apenas um observador exterior. Na altura, dentro do que foi possível, tentei sensibilizar várias entidades para o erro que me parecia estar a ser cometido com a extinção de um organismo técnico, dos poucos que restavam na AP. A partir do momento em que a carreira de engenheiro passou passou a ser integrada na de técnico superior da AP, houve subjacentemente uma desvalorização das competências específicas da Engenharia.


A profissão/carreira ficou desvalorizada ?
Se bem que os engenheiros tivessem continuado a dar o seu contributo, como davam até aí, o facto é que como profissão ficou desvalorizada em termos da própria sociedade. Fomos assistindo lentamente e mais aceleradamente no conturbado período da reforma administrativa do PRACE a uma desvalorização dos organismos técnicos, com a reformulação de alguns, fusão de outros. Os resultados parecem-me estar à vista. Toda a gente hoje quer ser engenheiro! Diria até que a Engenharia está “bem” na AP, porque toda a gente quer desempenhar as funções de um engenheiro, embora não tenham a capacidade de análise de problemas complexos que os engenheiros, de facto, têm, pela sua formação técnica e científica.
De um modo geral, a Engenharia portuguesa é reconhecida tecnicamente, quer no interior, quer no exterior. O problema está em passar a percepção dessa capacidade para a população em geral. A sociedade não tem noção do que se perdeu pela desvalorização dessa capacidade técnica e pela extinção desses organismos técnicos.


O que se perdeu ?
Uma das consequências dessa prejuízo foi alguma desvalorização, que me parece visível, do próprio Laboratório Nacional de Engenharia Civil, das Universidades da área, do Conselho Superior de Obras Públicas – que foi também extinto. E hoje assistimos, e lemos nos jornais, que há obras cujos custos disparam assustadoramente, que não cumprem um projecto, que o projecto não está sequer bem enquadrado do ponto de vista das especificações iniciais. Tudo isto se deve, do meu ponto de vista, à aniquilação desses organismos de competência técnica que até quatro ou cinco anos faziam a coordenação e supervisão desses problemas. De vez em quando havia questões? Claro que sim. Muitas vezes, em obra, os problemas são complexos. Mas não era como agora, da forma sistemática a que assistimos, com os custos a dispararem, a serem empolados e a não serem respeitados os prazos. Há aí uma falha de componente técnica. E hoje temos profissões, nobres com certeza, mas que não têm vocação para estarem à frente de um processo de condução de projectos de desenvolvimento do País. Há pessoas muito competentes, mas a quem esta competência técnica não pode ser reconhecida. De facto, isso conduziu a uma menor qualificação da AP, em si, e da própria sociedade em geral.
As equipas constituídas funcionaram bem, pelo menos na DGEMN funcionavam bem. Tínhamos gente muito competente na área de Engenharia, que conseguia suprir não só os trabalhos imediatos que tinham em mãos, como, ainda por cima, dar pareceres e fazer formação para outros organismos da AP, como o Tribunal de Contas, a quem a DGEMN chegou a dar formação na área específica da condução de obras.

Em termos práticos, de trabalho, manteve-se a continuidade das obras de conservação que a DGEMN fazia? O que aconteceu ao know-how técnico acumulado ao longo de todos esses anos?
Esse know-how perdeu-se. em absoluto o know-how técniconão depende apenas de um elemento. Depende de toda uma equipa. E quando as equipas foram dispersadas por diversos organismos e várias pessoas saíram da AP, óbviamente que essa coesão de equipa se perdeu. Toda a gente sabe que o valor de uma equipa é superior ao somatório do valor individual dos seus componentes. Nesse sentido, houve prejuízo imediato e concreto. Na tentativa de esclarecimento, prologuei por todo o tempo possível, face à extinção da DGEMN, alertei específicamente para esta área, tendo como exemplo o que tinha acontecido com a congénere inglesa que, no tempo da Primeira-ministra Margareth Thatcher, também havia sido extinta. Na altura, o Director  dessa nossa congénere fez uma campanha séria junto dos poderes públicos no sentido de evitar a extinção. Não foi possível, essa Direcção-geral foi também extinta, só que, mais pragmáticos que nós, um ano depois reconheceram o erro e tentaram recompôr essa mesma equipa. Já não foi possível, por diversos motivos, e perderam. Aqui em Portugal aconteceu exactamente a mesma coisa.
Se é um facto que muitas das competências da DGEMN foram distribuídas por dois ou três organismos, houve uma parte das competências que foi distribuída por vários outros…

Fala da área dos edifícios públicos, que, salvo erro, não foi formalmente assumida por ninguém, correcto? O que se passou?
A maior parte dos edifícios públicos ficou a cargo das secretarias-gerais dos diversos ministérios. Julgo que não se passou nem passa nada de especial! As secretarias-gerais vão fazendo, não têm equipas dedicadas para isso, não têm gente. Contratarão os serviços, provávelmente, fora. Mas isso não dá à Administração a capacidade de diálogo necessária com as equipas do exterior, que são óbviamente necessárias mas que precisam de ter alguém que possa dialogar dentro do mesmo jargão, com a mesma competência e capacidade de entendimento técnico, para poder discutir os assuntos e exigir de acordo com o que é razoável.

_____________________________
*Revista da Ordem dos Engenheiros.
**Venham 29.000 Euros e "après moi le déluge".
***Que permite, por exemplo, que haja licenciados em direito, sociólogos, historiadores, animadores culturais, etc a exercer funções normalmente desempenhadas por engenheiros (Ver, por exemplo, No Estado, chefe de divisão de obras é jurista; LNEC lança curso de especialização para diplomatas;  Próximo Governo: "No jobs for the boys"? ).

Ligações: Pode ler a entrevista completa de V. Costa à Ingenium nº127 aqui. Este número da revista da Ordem dos Engenheiros é dedicado à Engenharia na Administração Pública; Vasco Costa: a psicose do controlo dos funcionários ? ; Não há democracia sem transparênciaEste país não é para funcionários públicos

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