domingo, 10 de outubro de 2010

O que Cavaco devia ter feito e não fez

O Diário de Notícias de hoje publica uma entrevistade João Marcelino a Medina Carreira, que, pela sua importância, registamos e reproduzimos:

Gente Que Conta - entrevista com Henrique Medina Carreira

Apesar de considerar que Sócrates "não tem crédito" e que "o Governo merecia uma sapatada", o ex-ministro diz que não há outro remédio senão deixar passar o OE de 2011, para acalmar os mercados. Mandatário de Cavaco nas últimas presidenciais, não apoiará agora nenhum candidato porque, diz, o Presidente "não fez o que devia".
Medina Carreira foi ministro das Finanças há mais de 30 anos, num Governo de Mário Soares, mas ganhou notoriedade pública mais recentemente, fazendo a denúncia do crescente endividamento do País. Durante muito tempo foi apontado como um "catastrofista", alguém que se esgotava em alertas sem sentido. O tempo, no entanto, deu razão a este português de 79 anos, que nesta entrevista defende - apesar das sempre contundentes críticas ao Governo de José Sócrates - a importância de o País ter um Orçamento aprovado para acalmar os mercados que nos emprestam dinheiro. Passos Coelho deve abster-se explicando as razões ao País, afirma, ao mesmo tempo que revela que desta vez não vai apoiar nenhum candidato às presidenciais. Porquê? Porque este ex-militante do PS, ex--mandatário de Cavaco Silva, acha que o Presidente podia ter feito mais pelo esclarecimento dos cidadãos. "E não fez."

Em que altura decidiu partir para esta missão de alerta à sociedade? Foi um acto pensado de cidadania, ou foi aparecendo na sequência das suas intervenções políticas?
Há 15 anos, perante a queda da economia, que vem desde os anos 60, com outros amigos, fundámos o chamado Fórum Social, exactamente para chamar a atenção da sociedade e dos governos em geral. A seguir a isso, porque dava muito trabalho, e era eu que tratava de organizar tudo, deixei de realizar sessões do Fórum Social e passei a escrever, quando tinha paciência, a chamar a atenção para uma realidade que tem surpreendido muita gente. Tínhamos uma economia em enfraquecimento progressivo e um Estado a necessitar cada vez de mais impostos. Haveria de chegar o momento em que a economia não produziria receitas para o Estado. E foi isso que aconteceu.

Aconteceu quando? É capaz de datar esse momento?
Não é fácil, porque os governos variam nas políticas, pedem mais emprestado, menos emprestado, adiam despesas... Portanto, fomos vivendo num prelúdio de tragédia que foi acelerada pela crise internacional. Isto viria a acontecer, se não houvesse a crise de 2008, num momento mais tardio. Mas iria acontecer porque, como lhe digo, a economia caía e o Estado crescia.

Foi ministro das Finanças no Executivo de Mário Soares, quando foi necessário negociar pela primeira vez com o FMI, em 1977. Encontra algum paralelo com a situação de hoje?
Não, não há paralelo, porque nem foi por necessidade extrema na primeira vinda! O que aconteceu foi que nós obtínhamos financiamentos externos através da Alemanha, das boas relações de Mário Soares e, enquanto lá esteve, de Salgado Zenha. E com esse dinheiro fomos conseguindo aguentar os excessos revolucionários anteriores. Entretanto, esse dinheiro acabou, e o Governo americano propôs o chamado "grande empréstimo". Mas para fazer esse grande empréstimo, que era de mil e quinhentos milhões de dólares, fazia uma exigência: vir cá o FMI.

Como fiador?
Sim, vale a pena dar sempre uma vista de olhos pela casa do devedor. Quando veio mais tarde, com Ernâni Lopes, já foi numa crise muito grave.

Estamos aqui numa crise gravíssima de ruptura entre a riqueza que produzimos e o dinheiro que necessitamos. O espectro de intervenção do FMI neste momento em Portugal está ultrapassado em função das medidas que o Governo anuncio que ia inscrever no OE?
Digamos que está um pouco adiado e pode eventualmente nem vir. Nós temos, no chamado Estado social, qualquer coisa como seis milhões de portugueses. Tocar em salários, pensões, subsídios de doença ou de desemprego é uma tragédia, porque são seis milhões de portugueses que se põem de pé. Portanto, não há partido nenhum que consiga fazê-lo. Não era o PS, não era o PSD. Só haveria se o Governo apanhasse os dois, se fosse um Governo de coligação, como foi com Mota Pinto e Mário Soares em 83/84. Não havia maneira nenhuma de se resolver isto sem o FMI. Este último pacote... Não sei de quem foi exigência, se da senhora Merkel ou não, mas o Governo terá agido também sob uma pressão muito forte, senão não teria ido aos salários.

Não vê que haja aqui, da parte do Governo, uma estratégia económico-financeira?
Não, não há estratégia nenhuma! O primeiro-ministro não tem estratégia nenhuma na cabeça senão andar a fazer espectáculo e ir conciliando as circunstâncias para ver se vai durando. Aliás, este primeiro-ministro foi realmente uma desgraça para o País: nem tocou nos aspectos financeiros, nem tocou nos aspectos económicos. Qualquer solução financeira estável depende da economia. Mesmo essa consolidação que se diz que foi feita é uma coisa verdadeiramente...

No primeiro Governo de José Sócrates?
Exacto, de 2005 a 2008. Para ter uma noção da magreza desta consolidação, ela foi feita da pior maneira: a despesa corrente caiu 0,7, a despesa de capitais caiu 1,7 do produto. Quer dizer, cortou-se nas despesas capitais, foi o grande corte. Fazendo o quê? Tirando os investimentos para as parcerias público-privadas, Estradas de Portugal, para não aparecer no Orçamento. E os impostos cresceram 0,8. Foi à custa de impostos e de despesas de capital. Os impostos têm um tecto, as despesas de capital não podem baixar mais que zero. Isto só serviria se se tivesse mexido na despesa corrente - pessoal, prestações sociais, subsídios -, mas aí não mexeram! Isto ficou preso pelas costuras. A chamada consolidação de que o ministro Teixeira dos Santos e o primeiro-ministro falam - "já fizemos uma, podemos fazer duas ou três" - não tem assento nenhum na realidade.

José Sócrates continua a acreditar que a economia vai resistir às medidas anunciadas, mas a Standard&Poor's, uma das agências de rating internacionais, prevê uma contracção de 1,8 no crescimento do próximo ano, e o FMI diz mesmo que o desemprego deve subir até quase aos 11%. Quem tem razão?
Aparentemente, e em princípio, é o FMI, porque estas medidas são as ditas medidas contraccionistas. Havendo menos rendimento, porque os salários baixam e os impostos aumentam, a população vai consumir menos. É a evolução natural. Só há uma alternativa, que não depende de nós: exportarmos muito mais.

As pessoas perguntam: quantos anos pode levar a crise até ser ultrapassada?
Ninguém pode imaginar... Ao nível a que chegou o nosso endividamento externo - o peso dos juros e o estado da economia... A nossa economia foi-se abrindo quando entrámos para a CEE [Comunidade Económica Europeia, agora União Europeia]. Entrámos para 12, vamos em 27; por conseguinte, um primeiro factor que tornou difícil o crescimento da nossa economia foram os 27. Há muitas deslocalizações daqui para lá, por razões salariais, por razões de organização do Estado, etc. Saímos de uma economia fechada para uma economia sujeita a todas as ventanias externas e não nos preparámos para ser competitivos. E não sendo competitivos, não podemos ter exportações suficientes.

Portugal é mesmo, como o FMI disse esta semana, num relatório, uma ameaça à manutenção da Zona Euro? Ou também é catastrofista?
Portugal só, creio que é algum exagero. Mas há aqui uma posição com que se tem de contar, que é o que os alemães pensam disto. Imagine que nós não acompanhamos esta rearrumação financeira que a Europa impõe. Se formos só nós, não me admiro que nos deixem pelo caminho. Se a Grécia se equilibrar, se a Espanha se equilibrar, e a Irlanda, se ficarmos, digamos, o tinhoso único, não me admiro que nos baldeiem.

Pelo que depreendo das suas palavras, depois deste pacote, serão necessárias medidas adicionais em 2011 para que as finanças voltem a entrar no bom caminho? Ou seja, haverá um PEC III, um PEC IV...
Ou o PEC XXV! Seria bom que fosse assim, mas o problema não é esse: é que, quando chegarmos a 2013, saem as Scut e começam a entrar as par- cerias público-privadas no Orçamento. Mil milhões, mil e seiscentos milhões, mil e quinhentos milhões todos os anos! Depois de termos isto arrumado, aparece a desarrumação. Nessa altura, é quase com certeza necessário outras medidas.

Se fosse ministro das Finanças, quais seriam os vectores principais das suas políticas? Reduzir o Estado?
A primeira coisa se quisesse começar pela financeira, que é aflitiva, mas não é o real problema. O real problema é a economia. Não temos justiça que funcione, a nossa educação é uma miséria, a burocracia é um inferno, a corrupção...

Não houve Simplex?
O Simplex foi importante, mas o meu amigo faz uma sociedade em 50 minutos e depois espera seis meses para lhe darem uma autorização para pôr um toldo ou para abrir a porta. Não há uma visão global. Este Governo é um Governo de fogachos. O Simplex é muito bom. E o resto?!

Voltando às suas medidas.
Começando pelo fundo. Começaria pela arrumação do Estado em todos estes aspectos: educação, justiça, impostos. Os impostos são um sistema legal deplorável, os tribunais não funcionam. O que melhorou nos impostos? Foi a administração fiscal com a passagem de Paulo Macedo, realmente uma lança em África o que ele fez - com excessos, deficiências, com tudo o que é humano. Isso melhorou, mas o sistema legal é de fugir e o sistema judiciário também não funciona. Temos de mexer em seis ou sete coisas essenciais que são as chamadas reformas de fundo. Tenho um método para atacá-las que tenho tentado impingir, passe a expressão, mas ninguém dá dinheiro para fazer isso. É fazer um estudo comparativo com os países da Europa do Leste sobre aquilo em que estamos desfavoráveis - leis do trabalho - e em que aspectos. Nas discussões do trabalho, como tem presenciado, nunca ninguém se entende! "Isto precisa de ser mais flexível!" Os empregados dizem: "Não, isto já é flexível de mais!" A conversa morre sempre aí. Ao passo que, se se trouxer uma descrição sobre o que é o regime laboral nos países com que temos de competir, é diferente a discussão!

Isso no âmbito da economia. E nas finanças?
Nas finanças, temos de fazer um estudo das despesas muito pormenorizado e sossegado. Não é ir aos salários, isto ou aquilo. É ver despesa a despesa. Por exemplo, o mapa autárquico de mil oitocentos e tal não presta. Temos 30% de municípios com menos de dez mil habitantes... O que pagam de impostos não dá para o presidente da câmara, o chauffeur e a secretária!

Temos de reorganizar o País?
Tem de se reorganizar o mapa autárquico. 4500 freguesias é um disparate! E, no mapa autárquico, sabe porque não se mexe? Porque há presidentes de câmara que têm de ir tratar da vida para outro sítio. Não se faz nada que mexa em interesses! Empresas municipais - suprimir aí a eito.

Empresas que não fazem falta ao País?
Essas empresas? Então a gente viveu sem elas até há cinco anos! O que houve foi um esperto que descobriu que aquilo era maneira de fugir com o dinheiro às contas. Endividam-se pelas empresas municipais, e não se endividam pelas câmaras. Se estivesse nas finanças, no dia em que aparecesse a primeira, não deixava andar nem mais uma! Acabar com piscinas, redondéis, coisas onde se gasta dinheiro. Dizem: "Mas isso fez parte do meu programa." "Ai fez? E ganhou? Vá pedir aos seus votantes que lhe dêem dinheiro para fazer isso!" Porque eles querem cumprir os programas assumindo dinheiros que não têm.

E ao nível do Estado social - saúde, ensino... como mexeria?
Também temos de fazer uma análise a ver o que dói menos e a quem dói menos. Não preconizo que se mexa no Estado Social, em pessoas com 300 euros de reforma, que já são uma desgraça. Mas é acabar com as despesas inúteis todas... Há coisas que deve ser o ministro das Finanças a autorizar. Os carros devem ser modelo médio para ministros, e têm de durar cinco ou seis anos. Quando fui ministro, tinha um carro recuperado da sucata da alfândega de Lisboa.

O Estado social, tal qual o conhecemos, vai terminar?
Não. As minhas contas valem o que valem, mas entre 2015 e 2020 vai ter de se mexer.

E com coragem política?
A coragem não é difícil. Agora, trabalhar assim de qualquer maneira... Este pacote que saiu por aí deve ter sido feito em 48 horas. Isto foi alguém que foi a Bruxelas e trouxe um envelopezinho a dizer "mudem já!" Nenhum Governo ia ao pessoal sem pressão externa.

Se fosse trabalhador da PT, estaria apreensivo com a transferência do fundo de pensões ?
Essa pergunta é embaraçosa porque creio que dentro de alguns anos também a PT não vai ser a PT. Não sei se vai valer mais do que o Estado. Se for obrigada a praticar preços por chamada que tenham em conta o nível de vida dos portugueses, a PT não vale aquilo que vale. A PT põe os preços que quer, a energia são os preços que quer, a Galp faz aquilo que quer...

A PT não é uma empresa que está só no mercado português, tem também outras fontes de financiamento.
Está bem, tem essas fontes de financiamento. Mas não é possível termos comunicações caríssimas, taxas de aeroporto caríssimas - mais caras do que em Espanha.

Mas em relação à passagem do fundo de pensões para o Estado, no sentido de amenizar o desempenho orçamental deste ano...
Deve haver outros já na calha para o ano a seguir. Manuela Ferreira Leite fez isto, com grande indignação. E agora está-se a ver que estas habilidades têm de se fazer.

Tinha a noção de que a execução orçamental estava a falhar?
Há uns dois anos que não acredito naquilo que o Ministério das Finanças diz.

Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal...
[interrompendo]... sugeriu uma agência, que eu estava para sugerir um dia destes!

Portanto, faz todo o sentido?
Para mim faz todo o sentido, o Ministério das Finanças não merece crédito! E o Ministério das Finanças era das coisas rigorosas que havia no País. Aquilo já é considerado uma barraca de farturas.

O BPN é actualmente a maior incógnita do próximo ano para as contas nacionais. Há quem diga que está em risco de acontecer o mesmo que na Irlanda, onde o défice passou de 10% para 32%...
[interrompendo] 32%, não, isso é um exagero; no [nosso caso] máximo, 4%!

... Mas no caso português... Acha que isso é uma espada que está sobre o Orçamento?
É. Pelos valores de que se fala, aquilo vai dar grande sarilho. Agora, o BPN: sejamos sérios. Estava a dar uma entrevista ao Rádio Clube quando foi nacionalizado, e concordei. Ainda concordo! Acho que foi das coisas bem feitas pelo Governo.

Mas não tinha ideia da dimensão do buraco?
Ninguém tinha! Mas há uma ideia que uma pessoa sensata tinha: é que se se deixasse haver uma corrida à caixa do BPN...

Tinha de se defender o sistema financeiro?
Exactamente! Não é [era] o BPP.

Portanto, este era um preço que...
[interrompendo] Assim, vão ser três ou quatro mil milhões. O outro preço, não sei qual seria. Um levantamento generalizado da banca era uma tragédia.

É das poucas coisas em que concorda com o Governo?
Estou, estou de acordo. E também estou noutras. A política de energias, das barragens, completamente.

Foi uma das pessoas que impulsionaram, em Maio, um encontro do Presidente da República com nove ex-ministros das Finanças.
Eram os que estavam aqui e quiseram ir. Mas não pondero repetir. Era um momento diferente. Hoje, a consciência da situação é muitíssimo mais nítida. Naquela altura, pensei: o que é que a gente pode fazer? Ir para as ruas berrar, não vale a pena. Talvez, simbolicamente, nove ex-ministros das Finanças é muita experiência acumulada em vários anos, várias situações, pessoas com propensões ideológicas diferentes, era um capital de conhecimento.

Essa reunião também visava um alerta público. Resultou?
Era um alerta público. Não faço ideia se resultou, vocês [comunicação social] é que podem ter uma ideia. Era o que podíamos fazer; enfim, sem um golpe de Estado, era isso.

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